A cultura dos incultos
A ilusão de que há uma “cultura portuguesa” ou mesmo uma “identidade nacional”, somada a outras, como a estranha convicção de que a cultura é uma coisa boa, ou que somos a língua que escrevemos – e não a que sentimos, aquela em que amamos e nos damos – faz das matrizes que interpretam Portugal e os portugueses parecerem estranhas quadrículas coloridas, um mapa de muitos pontinhos, cara com acne ou simplesmente uma forma pacóvia de desentender o multicultural (que somos) e as heranças tão variadas que nos correm na pele.
Depois de 1500, ao sangue galego e português onde havia tantas expressões mescladas – dos visigodos, dos muçulmanos, dos romanos, dos borgonheses, dos judeus, de todos os que fizeram a Ibéria, em suma, e não aqueles a que o Professor de Direito que faltou às aulas de História chama com alguma graça e pouco acerto “os lusitanos” – somou-se o sangue do mundo em todas as suas cambiantes.
Misturámo-nos e fizemos. E se isso não foi Descobrimentos terá sido pelo menos o grau zero da possibilidade de nos descobrirmos. Somos, isso sim, os degraus de uma escada antiga onde nos cruzamos, o somatório surpreendente de muitos universos culturais e este plural – somos – dá-nos muita matéria para pensar.
Temos, depois de alguns incultos acharem que o futuro estava nos mercados e não no que de mais sólido gerarmos, outra vez um ministério da cultura, que devia ser das culturas, pois aos que estavam há séculos no nosso território continental juntaram-se todos os que colonizámos, e todos os outros vindos da imigração, que felizmente, todos, nos têm trazido tantas sadias interpretações.
A surpresa dos últimos dias foi verificar que há gente da esquerda tradicionalista e alguma direita vanguardista, quando por capricho se andou toureando as percentagens do IVA nos espetáculos.
Na arena política lidaram-se fantasmas antigos e o sangue velho dos avós, ao lado dos espectros vivos e do sangue novo dos precocemente envelhecidos. Discutiram-se bárbaros, barbaridades e barbárie, mas o mais importante – senhores!!! – afinal era o IVA da desigualdade.
E a parte profunda emergiu: um coração humanista e bem formado pode ir à tourada? Um ateu repelente, jacobino e com Marx na ilharga pode ir à tourada? E a frequentadora assídua da missa dominical, o fervoroso opus dei, o pai de família conservador, a beata virgem e o senhor prior – podem odiar a tortura dos animais na arena? Vivem os lados da medalha pendurados em fios opostos?
Se a cultura fosse boa não estaria na história tanta aberração – os médicos que militam na Al Qaeda, ou Che Guevara, que era médico e matou quando e sempre a hora o reclamava, ou a quantidade de Doutorados nos quadros das SS e da Gestapo Nazis, ou gente da cultura erudita ao lado de Trump, Bolsonaro, Salazar, Franco, outros…
O novo ministro da Cultura – espante-se: cultura! – do Brasil quer acabar com os marxistas nas artes em geral. Como se fosse mosquito transmissor de dengue. Mas muitos artistas marxistas fariam o mesmo ao novo ministro da cultura do Brasil, com uma boa lavagem cerebral, perdão: cultural. Aliás, um ator de filmes pornográficos bem conhecido dos portugueses, o brasileiro Alexandre Frota chegou a ser falado como ministro da cultura para o país imão (irmão, felizmente de pais diferentes). A pornografia é cultura, então? Tal como casar às cegas, ou criar um top de amores para ganhar audiências, ou recrutar figuras decadentes e ultrapassadas como comentadores de atualidade. É a cultura, senhores! A cultura! Com dois UU, em maiúsculas: cUltUra. O caleidoscópio! O formato complexo que inclui o conhecimento, a arte, as crenças, a lei, a moral, os costumes e todos os hábitos e aptidões adquiridos pelo ser humano não somente em família, como também por fazer parte de uma sociedade da qual é membro. Cuspir na sopa, bater na avó, bombardear os ucranianos, matar diplomatas, desrespeitar os Direitos Humanos, violar, violentar, roubar, corromper, promover guerras, ganhar dinheiro a qualquer preço, morrer de desprezo, exercer o pior de nós sobre os que não são como nós…
A cultura passa por tudo isso. Seja no radicalismo religioso, no político, no artístico, no ético.
Somos o que transformamos – e isso é cultura. A pior é aquela que nos rebaixa e envergonha. A que desumaniza. A que mata impunemente. A que paga IVA, todavia, para alegria dos incultos.
Alexandre Honrado
Historiador